O Doutorado


Em meados de 2015, abriu inscrição para o curso Doutorado em Ensino e História da Matemática e da Física, do PEMAT/UFRJ. Iniciava-se doutorado no programa. Já havia concluído o mestrado nesse programa, PEMAT, e prontamente candidatei-me ao doutorado com um pré-projeto sobre adaptação de avaliações de matemática para deficientes visuais.

Trabalhava em uma operadora de concursos e havia atuado em adaptações de provas para o Braille e para programas de leitura em computadores. A complexidade do processo de adaptações justificava o projeto. Toda imagem (gráficos, tabelas, esquemas e mapas) devem ser transformadas em textos corridos observando o princípio da isonomia. Em avaliações públicas, todos os participantes devem ter as mesmas condições de participação, e era a observância desse princípio o foco de meu interesse. No pré-projeto, a questão de pesquisa apresentada foi:

Até que ponto e sobre quais condições é possível adaptar questões elaboradas para videntes (pessoas com visão normal) para pessoas com deficiências visuais, garantindo a isonomia entre as duas versões?

A ideia inicial era perscrutar as adaptações para o Braille e para os programas de computador, mas havia uma terceira adaptação, bastante comum, que era a ação dos ledores. Ledores são pessoas que leem as provas para deficientes visuais. Eu só tinha contato com essa terceira modalidade de adaptação por intermédio de meu filho, que era ledor e discutia comigo as dificuldades encontradas. Decidi fazer um curso de ledor e inteirar-me sobre as dificuldades e inscrevi-me em um curso à distância do Grupo Incluir. Feito o curso, fui encontrar com a minha orientadora, a Prof.ª Cláudia Segadas Vianna. Ao ver meu entusiasmo, ela declarou: "Você acaba de decidir o corte na abordagem de sua pesquisa". Afastei-me das outras adaptações e a questão de pesquisa passou a ser:

Quais as ações dos Ledores nas avaliações públicas? Tais ações, em conjunto com as adaptações, garantem a isonomia (equidade) com as provas convencionais?

Fiz a prova de seleção ao doutorado, fui para a entrevista, apresentei meu pré-projeto, mas não fui selecionado. No dia seguinte à publicação dos resultados da seleção, recebi um e-mail do Victor Giraldo, coordenador do projeto PEMAT, me convocando a ir ao Fundão para conversar com ele. Nessa conversa ele disse que a banca de seleção gostou do meu projeto, mas o número de vagas era limitado e eu acabei não sendo selecionado. Incentivou-me a participar novamente do processo de seleção que ocorreria em seis meses e propôs que eu fizesse a primeira disciplina do doutorado, Reflexões sobre o Pensamento Científico e o Ensino, ministra pelo Prof. Antônio Augusto Videira, como aluno avulso. Se eu passasse na próxima seleção, a disciplina já estaria cumprida. A empresa na qual eu trabalhava me liberou as tardes das quartas-feiras para que eu fizesse o curso. Terminei a disciplina e fui selecionado para participar do doutorado em março de 2016.

Ao final das contas, não ter sido aprovado na primeira seleção acabou sendo benéfico, haja vista que eu cumpri uma disciplina sem a premência do tempo estimado para o doutorado, ou seja, acabei tendo quatro anos e meio para fechar o doutorado, mais meio ano como aluno avulso que não contaram no tempo oficial para término do curso.

Não tive bolsa de pesquisa, nem me candidatei a uma. Eu mantive vínculo empregatício durante todo o curso. As demais disciplinas que tive que cumprir no doutorado, assim como as reuniões com a orientadora, ocorreram nos finais das tardes das quartas-feiras. Para cumpri-las, eu chegava a empresa uma hora e meia mais cedo e era liberado duas horas e meia mais cedo. Portanto, eu era liberado uma hora por semana para fazer o doutorado. Por outro lado, meu trabalho é sazonal: existem períodos de intensa atividade, obrigando-nos, inclusive, a cumprir muitas horas extras, e existem períodos com lapsos grandes entre uma atividade e outra. Nesses momentos, eu usava os lapsos para dedicar-me ao doutorado. Dessa forma, a disciplina que cumpri como avulso foi bastante propícia.

A avaliação de Reflexões sobre o Pensamento Científico e o Ensino foi um trabalho de final de curso. Devíamos escolher um ponto discutido durante o curso e discorrer sobre ele. Abordei um conceito do que seria ciência comparando uma pessoa que observa uma obra de arte (o obra escolhida foi True Rouge, de Tunga) com um cientista observando seu objeto de pesquisa. O texto produzido como trabalho final da disciplina acabou sendo publicado no site do Instituto Inhotim.

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Consegui aproveitar muitas das disciplinas do mestrado no doutorado, o que liberou tempo para dedicar-me à pesquisa e elaboração da tese. Umas das dificuldades que tive foi o ineditismo do tema escolhido. Não conseguia encontrar referências que fundamentassem diretamente minha pesquisa, no Brasil nem fora dele. Teve que buscar referências que não tratavam diretamente do ledor. Se, por um lado, o ineditismo valorizava o trabalho, por outro, a ausência de bibliografia específica dificultou a pesquisa. Conheço uma única dissertação de mestrado, de Dário de Ávila Aguirre, que trata diretamente o ledor, As Capacitações de Ledores e Transcritores para Inclusão e Acesso em Processos Seletivos à Educação Superior: A Percepção dos Egressos, defendida em fevereiro de 2019. Essa dissertação pode ser encontrada em

https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/bitstream/tede/2588/2/DariodeAvilaAguirreDissertacao2019.pdf

Por se tratar do ato de ler, e, em especial, do ato de ler questões de matemática para deficientes visuais, a pesquisa exigiu que eu estudasse linguística, sociologia e semiótica. Minha área de concentração, assim como a da minha orientadora, é a matemática. A dificuldade de transitarmos em área que não eram as nossas levou a muitas discussões e discordâncias. Por vezes, perdíamos bons tempos durante as reuniões de orientação discutindo propostas de encaminhamento da pesquisa. Acabamos pedindo auxílio, dentre outras pessoas, ao Prof. Rodrigo Pereira da Rocha Rosistolato, antropólogo e professor da Faculdade de Educação da UFRJ. As propostas de encaminhamento feitas por Rosistolato foram fundamentais para retirar algumas pedras que surgiram no caminho, e o Mestre acabou fazendo parte da banca de avaliação.

Além da Profª Cláudia Segadas e do Prof. Rosistolato, compuseram a banca o Prof. Victor Augusto Giraldo, matemático e coordenador do PEMAT, a Profª Marta Barroso Feijó, do Instituto de Física da UFRJ e com vasta experiência em análise de avaliações públicas, e o Prof. João Ricardo Melo Figueiredo, linguista e diretor do Instituto Benjamin Constant. Além de linguista, o Prof. João tem baixa visão, o que lhe permitiu uma percepção fundamentada não somente nos seus conhecimentos teóricos, mas na vivência daqueles a quem o objeto de pesquisa se direcionava. Uma banca composta de pessoas com formações diversificadas com esta fez-se necessária devido ao leque de disciplinas abordadas na pesquisa.

Para expor a complexidade das ações do ledor, produzimos um texto que foi apresentado no Primeiro Encontro Nacional de Matemática Inclusiva, O Ato de Ler e o Ledor. Infelizmente, por incompatibilidade de datas, não pude estar presente no encontro, mas a Profª Cláudia Segadas, junto com seu grupo de orientandos, fez o favor de apresentar o texto.

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Quando apresentei o pré-projeto de pesquisa à banca de seleção, propunha vincular a pesquisa ao meu trabalho profissional. A ideia era utilizar as adaptações que eu fazia em minha labuta como um dos focos de pesquisa. Na qualificação do doutorado apresentei um dos capítulos da tese integralmente produzido sobre essas adaptações. A banca entendeu que eu não poderia produzir esse capítulo sem a autorização expressa da instituição para a qual o trabalho havia sido feito. Pedi a autorização e ela me foi negada. Tive que reescrever o capítulo inteiro utilizando material de diversas operadoras de concursos. Com isso, a vinculação da pesquisa ao trabalho que eu vinha desenvolvendo perdeu o sentido e a pesquisa passou a referenciar-se a várias instituições. De certa forma, creio que a generalização das referências foi um ganho, apesar do aumento de trabalho.

Outro ponto que a banca de qualificação entendeu que não deveria ser abordado, observação com a qual concordei e continuo achando ser uma decisão acertada, foi a retirada da proposta de um capítulo que apresentava a inclusão como um novo paradigma. Fundamentado em Thomas Kuhn, A Estrutura da Revolução Científica, e em uma série de textos que abordavam a evolução do tratamento dado socialmente às pessoas com necessidades especiais, o capítulo apresentava a inclusão como um novo paradigma social. A banca entendeu que, para desenvolver a ideia, eu precisaria de muito mais fundamentação do que as que eu estava usando e julgou que seria melhor desenvolver essa abordagem em texto fora da tese, em momento mais propício. Espero que um dia venha a fazê-lo. Mesmo assim, cheguei a apresentar duas palestras sobre o paradigma da inclusão, uma na Faculdade de Medicina de Petrópolis, convidado pelo Prof. Renato Möller, e outra no Instituto Federal do Sul de Minas, em Pouso Alegre.

A maior dificuldade que tive para concluir a tese foi gerada pela Comissão de Ética da Plataforma Brasil. O projeto da tese incluía entrevistas com um ledor e um coordenador de cursos de formação de ledores. Por envolver pessoas, eu tinha que me submeter ao parecer da Comissão de Ética, o que julgo extremamente pertinente. O problema é o nível de burocracia que foi exigido para que eu fizesse duas entrevistas com adultos e que possuíam formação de terceiro grau. Descrevi o objetivo das entrevistas, apresentei as perguntas que seriam feitas, documentos assumindo minhas responsabilidades, documentos a serem assinados pelos entrevistados declarando a consciência dos objetivos e a permissão de uso do texto produzido, e as fichas preenchidas e enviadas à comissão iam e voltavam. Cheguei a fazer um curso no hospital Clementino Fraga Filho (Hospital do Fundão) onde funcionava a Comissão de Ética, e nada de conseguir permissão para fazer duas entrevistas. Eu não estava me propondo a dissecar animais, trabalhar com menores de idades ou entrevistar pessoas vulneráveis. Eram duas entrevistas com pessoas com cursos superiores e bem informadas. Mesmo assim, demorou um ano para conseguir a autorização. Tive oportunidade de participar de uma palestra dada pelo diretor da Comissão de Ética e critiquei publicamente o desserviço que a comissão gerava com o nível de burocracia para autorizar ações simples em pesquisa, travando o seu desenvolvimento. Quase desisti das entrevistas. Ainda bem que não o fiz, elas foram preciosas para a identificação da realidade vivida por um ledor.

Uma das dificuldades do ledor é a leitura de imagens. Como consequência das diversas observações de imagens presentes nas avaliações públicas, criamos uma classificação dessas imagens apresentando-as em três categorias: figuras ilustrativas, que não cumprem função na construção da solução da questão, não apresentando qualquer informação relevante para a solução; figuras sínteses, que não apresentam informações novas, mas que sintetizam as informações presentes no enunciado; e figuras informativas, que trazem dados novos e essenciais para a construção da solução.

Fazia parte das exigências para a defesa da tese a submissão de um artigo a uma revista especializada. Submetemos à Revista Paranaense de Educação Matemática o artigo Imagens, Adaptações e Inclusão, que abordava a classificação das imagens e que veio a ser publicado.

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O trabalho braçal da escritura da tese concentrou-se na análise de questões do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). A escolha dessas duas avaliações deveu-se por elas serem de âmbito nacional e por apresentarem participantes com perfis diferentes. Além disso, as duas fazem uso de Prova do Ledor.

A Prova do Ledor é uma versão da prova que não apresenta imagens ou expressões matemáticas, toda a prova da versão original é convertida em texto corridos por especialistas. Nosso trabalho foi comparar a versão original com a convertida para o ledor.

Para objetivar a comparação, criamos um "crivo de análise", sete perguntas a serem respondidas com "sim" ou "não". Cada questão analisada era submetida a essas perguntas. Depois de serem submetidas ao crivo, fazíamos observações sobre as respostas.

Ao todo foram selecionadas para análise 178 questões e a tese ficou com 680 páginas. A banca declarou que eu teria feito um trabalho hercúleo com a análise de todo esse material. De fato o trabalho não foi pequeno (cheguei a tirar 20 dias de licença não remunerada para concluir a escritura da tese), mas vamos dar a César o que é de César. Eu analiso questões há décadas, utilizando os mais diversos critérios, o que fez com que essa parte do trabalho não fosse mais do que a continuidade do que eu já estava acostumado a fazer. Hércules trabalhou muito mais do que eu. O meu trabalho justificou o título de Doutor, mas não merece a alcunha de hercúleo.

A tese foi aprovada com defesa em 04 de fevereiro de 2020. Ficaram algumas alterações indicadas pela banca, que foram feitas até o final de fevereiro. Dei entrada ao pedido de conclusão de curso, na Secretaria de Pós-Graduação, um dia antes de seu fechamento devido à pandemia. Doctoratus est complebitur.

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