Onde Tudo Começou


Estudei 14 anos na mesma escola, do jardim de infância até a 3ª série do Ensino Médio, o Instituto Rangel Pestana. É uma escola pública no centro de Nova Iguaçu. Lembro-me de poucas passagens inusitadas que se deram no período que vai até a quarta série primária. Uma delas é que a turma era dividida em dois blocos: de um lado sentavam as meninas e do outro os meninos. Se alguém tivesse um comportamento inadequado, um dos castigos possíveis era ser posto sentado no outro lado. Hoje em dia, possivelmente, uma organização dessas geraria processo jurídico, mas, como memória, serve para caracterizar o perfil da instituição.

O prédio do Rangel Pestana é belíssimo, um castelinho, e dividia muro com o Instituto de Educação, onde funcionava uma escola de formação de professores (Normal). Os dois colégios fundiram-se, e a nova escola passou a oferecer o Curso Ginasial. De fato, o Ginásio deixou de existir, constituindo o que passou a ser o Ensino Fundamental, da primeira série a oitava. Eu continuei na mesma escola, saindo da quarta série para quinta automaticamente. Até então, a continuidade dos estudos se dava através de um concurso chamado de Admissão ao Ginásio. Não precisei me sujeitar a esse concurso.

A quinta série chegou cheia de novidades: muitos professores, várias disciplinas, cadernos com várias divisões e maior responsabilidade. Cada vez mais eu ia me identificando com a escola, participando das aulas e me empenhando para conseguir "notas boas".

Na 7ª série, fiz parte de uma chapa que concorreu ao Grêmio Estudantil (na época chamado de Centro Cívico). Desse momento em diante, minha participação nas atividades escolares se intensificou, sobretudo no Ensino Médio. Fizemos visitas a empresas, assistimos a peças teatrais que eram montadas na escola, festas do dia das crianças, demonstrações do corpo de bombeiro, constituímos um jornal estudantil (O Verbo), montamos peças, organizamos campanhas de doações, a festa de entrega dos melhores do ano, o clube do livro. O que não era oferecido à escola e julgávamos oportuno, nós montávamos. Cheguei a participar de um festival estudantil com a "música" Cuca Quente.

Eu assistia às aulas no horário da manhã, ia para casa almoçar e voltava para a escola. Por vezes, nem para casa almoçar eu ia, e em outras tantas entrava pelo período das aulas noturnas. O Rangel Pestana foi, para mim, uma escola de tempo integral. Pela intensidade de minhas participações nas atividades da escola, eu tinha, extraoficialmente, uma espécie de passe livre, entrava e saída da escola na hora que eu quisesse. No período do jornal O Verbo, chegamos a ter uma sala no segundo andar do ginásio que era a redação do jornal. O Rangel Pestana foi o lugar dos encontros, com toda a carga semântica que a palavra encontros pode ter. Tive uma vida extracurricular que dificilmente teria em outra instituição.



Entretanto, no que concerne ao currículo oficial, o Rangel Pestana deixava muito a desejar. Terminei a 8ª série sem nunca ter ouvido falar no Teorema de Pitágoras. O corpo discente da escola não condizia com a expectativa de um currículo formal. Éramos, em geral, pobres e morávamos em Nova Iguaçu, uma cidade com pouca tradição cultural. Não tínhamos acesso a cinema, a teatro, a bibliotecas ou livrarias e os canais de televisão eram poucos. Quem consumia cultura em Nova Iguaçu deslocava-se para o Rio de Janeiro, o que demandava dinheiro, de que nossas famílias não dispunham. Quando saí de Nova Iguaçu em 2002, a cidade tinha cerca de um milhão de habitantes, e eu me lembro de existir uma única livraria.

Havia excelentes professores no Rangel Pestana, até porque a localização da escola atraía esses professores. Eles faziam o que era possível, mas as condições de trabalho não eram favoráveis. Além das características culturais dos alunos não estarem coadunadas com um currículo tradicional, não identifico que houvesse uma proposta pedagógica que costurasse o trabalho dos professores e nem que buscasse uma adequação à realidade cultural dos alunos. Os professores chegavam no ponto que fosse possível.

Se fechei o Primeiro Grau sem conhecer o Teorema de Pitágoras, o caos foi maior no Ensino Médio. Estudei no período da Lei 5692, e meu Segundo Grau foi profissionalizante, sou técnico em administração de empresas. Tive as disciplinas de Administração, Organização de Empresas, Contabilidade, Direito e Legislação e outras ligadas ao currículo técnico. No que tange ao corpo propedêutico, os limites impostos foram tremendos. Em Matemática, cheguei a fechar funções quadráticas e estudar matrizes; em Física, só vi cinemática; não tive aulas de Química e pouca coisa foi abordada na área humana.

Eu prestava muita atenção nas aulas, participava bastante, e estudava o suficiente para ir muito bem nas provas, o que não era difícil. Bastava alguns dias de estudo nos finais de semana e garantia bons resultados. Tinha orgulho do boletim que possuía, mas esse orgulho tombou ao final da 8ª série.

Decidi prestar o exame para o Colégio Militar da Tijuca. Eu não sabia se conseguiria passar, mas, devido aos resultados que eu possuía no Rangel Pestana, não esperava um desempenho ruim. Meus pais me levaram até a Tijuca. Entrei na sala do exame e recebi o caderno de prova. O problema não foi não conseguir responder as questões. O problema foi olhar para a prova e perceber que eu sequer identificava sobre o que tratava a maioria das questões. Foi um choque de realidade. Ser um excelente aluno no Rangel Pestana não me dava qualquer destaque diante do que eu deveria saber.

Voltei para casa em silêncio no carro de meus pais. Passei a noite ruminando a agonia de meus limites. Na manhã seguinte, um domingo de final de outubro, fui à estante e peguei o livro de 5ª série, Matemática Moderna, de Marcius Brandão. Abri na primeira página e comecei a estudá-lo. Em 15 de dezembro terminei o estudo desse livro. Havia decidido que os limites seriam transpostos estudando por conta própria. Até a terceira série do Ensino Médio, estudei sete livros de Matemática, quatro livros de Física, dois livros de História, um de Biologia e o que mais passasse por minhas mãos e atraísse meu interesse.

Não me afastei das atividades extracurriculares. Meus estudos individuais se desenvolviam nos finais de semana, férias e feriados. Não pense que havia qualquer sacrifício nos estudos durante as férias. Eu gozava as férias fazendo o que eu mais gostava: estudar. Gostar de estudar é uma dádiva que recebi de minha mãe. Ela comprava livros no Círculo do Livro, que chegavam pelo correio, e, com frequência, discutia comigo o que havia lido, mesmo que eu não tivesse condição de entender. O primeiro contato que tive com Freud foi por intermédio dela, aos meus doze anos de idade. Eram os Deuses Astronautas?, O Macaco Nu, Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, Mulheres de Médico, O Tubarão foram livros que eu li após os comentários dela. Apaixonei-me por estudar e, talvez, seja essa uma das maiores contribuições que fiz aos meus alunos, fazer com que eles percebam que é possível gostar de estudar. Quando terminei o doutorado, encadernei minha tese em capa dura, coloquei um certificado de conclusão entre as páginas e entreguei a minha mãe dizendo: parte desse trabalho é seu.

Dois momentos desses estudos pessoais merecem destaque. Ao final do segundo ano, pedi ao professor Sérgio, de Física, algum livro para que eu pudesse estudar durante as férias. Ele me deu uma coleção de livros de Física e me disse que ali eu tinha material para estudar durante muito tempo. Meu primo veio de São Paulo para passar as festas de final de ano conosco e eu dei toda atenção a ele. Na manhã de 4 de janeiro ele voltou para São Paulo. Em 4 de janeiro eu comecei a estudar o primeiro dos livros de Física. Em 4 de março eu fechei o último livro da coleção e fui procurar o professor Sérgio que me olhou admirado e disse: "Cara, você nasceu para estudar! Sente e estude!"

No final da primeira série eu sabia que seria dado um curso, no ano seguinte, ligado às cadeiras técnicas, chamado Matemática Aplicada. De fato era um curso de aritmética e quem ministraria as aulas era o professor Junier. Pedi ao professor a indicação de um livro para que eu pudesse me preparar durante as férias. Ele me emprestou o livro que usaria no ano seguinte, Ary Quintella. Passei as férias debruçado sobre o livro. Fiz todos os exercícios e, quando havia alguma dúvida, eu cortava uma tira de papel, anotava a dúvida na tira e colocava na folha que deu origem à dúvida. No primeiro dia de aula, disse ao professor Junier que havia estudado o livro e tinha algumas dúvidas, perguntando se não poderia saná-las. Ele marcou comigo na sala dos professores após o almoço. Sentamos em um canto da sala e ele ficou comigo, tirando todas as minhas dúvidas, a tarde inteira e parte da noite. Sanada a última dúvida, ele me deu o livro e disse: "Você já está aprovado. Não precisa aparecer em minhas aulas. Só apareça para fazer as provas." Eu fui aprovado no primeiro dia de aula.

Na terceira série do Ensino Médio, inscrevi-me no curso pré-vestibular Delta, um dos maiores cursos em Nova Iguaçu. O Delta fazia um concurso de bolsa no início do ano. Todos os alunos faziam a prova e, dependendo do desempenho na prova, o aluno recebia um desconto na mensalidade. Eu tive um bom desconto e, com isso, meu pai pôde pagar as mensalidades. Nesse período, afastei-me das atividades extracurriculares, estudava no Rangel Pestana de manhã e no Delta à tarde.

Meu objetivo era entrar na universidade e para consegui-lo tracei a meta de acertar mais que 80% de cada uma das disciplinas que compunham os simulados que o Delta organizava. Eu não tinha ideia do que significava a consecução dessa meta.

O Primeiro simulado foi organizado. O Delta apresentava os resultados dos simulados em ordem decrescente das pontuações, e ao lado dos pontos obtidos por cada aluno aparecia a faculdade que ele teria entrado. Os alunos que não obtivessem pontuação suficiente para entrar em qualquer faculdade não eram listados. Parei na frente da listagem e, começando pelo último nome da lista, procurava o meu. Os nomes se sucediam e o meu não aparecia. A sensação de angústia pelos meus limites que tivera ao fim da 8ª série foi tomando conta de mim: vinha estudando assiduamente desde o final do Ensino Fundamental e nem mesmo consegui ser classificado para alguma faculdade! A angústia aumentava conforme os nomes passavam. Quando cheguei ao topo da lista o polo das sensações se inverteu. Eu fui o primeiro colocado e teria passado para Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi um banho de autoestima que se manteve até o final do curso: eu fui o primeiro colocado em todos os quatro simulados organizados pelo Delta.

Na metade do ano houve o recesso escolar, excelente período para estudar. Meu pai disse que precisava conversar comigo e relatou que não tinha mais dinheiro para pagar o pré-vestibular. Eu retruquei que não se preocupasse, já sabia o que tinha que fazer e conseguiria estudar por conta própria para o vestibular. O segundo semestre começou e eu não apareci no Delta na primeira semana. Estava em casa estudando quando um carro parou a porta. Era o secretário do professor Fernando, diretor do Delta e conhecido como Fernandão. O secretário disse-me que o Fernandão queria falar comigo. Fui de carro até o curso e sentei a frente do diretor. Ele interpelou-me sobre o motivo de eu ter faltado a semana inteira. Apresentei-lhe o porquê, meu pai não tinha mais dinheiro para arcar com as mensalidades. Recebi uma bolsa integral e participei do segundo semestre do curso gratuitamente.

O vestibular chegou e eu passei para engenharia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estava terminando o primeiro ano do curso quando o professor Fernandão me chamou novamente e perguntou-me se eu queria ministrar aula no Delta. Eu precisava de dinheiro, admirava a profissão de professor e essa era uma ótima oportunidade. Aceitei o convite. Pensei que eu fosse ministrar aula em uma 7ª série ou em uma 8ª série, o Delta tinha um grande pré-vestibular, mas era um colégio com o Ensino Fundamental. Em dezembro, o professor Fernandão avisou-me que eu iria assumir nove turmas do pré-vestibular. Metade de uma dessas turmas era formada por ex-colegas, e minha relação com eles, em sala e fora dela, era excelente. Começava a minha vida profissional.

Já trabalhava no Delta como professor quando descobri que, no final do ano em que eu fazia o pré-vestibular, formou-se uma bolsa de aposta. As apostas eram para saber quem conseguiria a maior pontuação no vestibular, eu ou uma aluna do Colégio Iguaçuano. Estava consolidada, em Nova Iguaçu, a minha fama de estudioso.