O Mestrado


O primeiro mestrado no qual me inscrevi foi o do Programa de Pós-Graduação em Educação da Puc-RIO. Passei na prova de seleção, mas fiquei na entrevista. Eu tinha que apresentar, na entrevista, o meu interesse de estudos durante o mestrado, e o fiz. A professora que estava me entrevistando era de matemática e por três vezes perguntou se eu não queria mudar de projeto, estudar alguma coisa ligada ao ensino de matemática, e eu mantive-me firme no projeto que apresentara. Creio que esse foi o motivo de acabar não fazendo parte do programa.

Quando se deseja ingressar em um programa de pós-graduação que exige a apresentação de um pré-projeto de pesquisa, o que é muito mais comum nos doutorados do que nos mestrados, há dois possíveis caminhos aconselháveis. Um deles é criar o projeto e depois buscar uma instituição que venha desenvolvendo pesquisas afins com o projeto que foi criado. O outro é escolher a instituição, entrar no site do programa de pós-graduação e verificar quais as pesquisas que estão sendo feitas, quais as linhas de pesquisa do programa, e só então criar um pré-projeto que se enquadre em uma das linhas de pesquisa. Aparecendo com um projeto distante das pesquisas do programa, corre-se o risco de não gerar interesse ou não haver no programa quem oriente. Infelizmente, esse conselho eu só criei depois de ter me candidatado ao programa da PUC, senão, eu poderia tê-lo seguido.

Na época da entrevista, eu estava interessado nos ritos presentes em sala de aula. Propunha-me a perscrutá-los e me baseava em um texto que havia escrito após alguns estudos. Formulei a proposta sem verificar o que se vinha desenvolvendo no programa da PUC.

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PARA AQUÉM DA GUISA DE CONCLUSÃO

Após ler os textos Política da (In)Diferença: Individualismo e Esfera Pública na Sociedade Contemporânea, de Margareth Rago, e O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade, de Richard Sennett, propomo-nos analisar os comportamentos em sala de aula que evidenciassem as tensões entre público e privado. Aqui começaram nossas translineações: a sala de aula é um espaço exclusivamente público ou há nela nuances de um espaço privado? Encontramos em uma guia de estudos as definições de espaço público e de espaço privado:

Espaço Público - lugar próprio da convivência social (entre estranhos).

Espaço Privado - lugar restrito do indivíduo ou de um pequeno grupo de pessoas como a família ou um grupo de amigos íntimos.

Lemos estas definições para duas turmas da segunda série do Ensino Médio e as discutimos durante, no máximo, cinco minutos. Em seguida perguntamos aos alunos: "A sua casa é um espaço público ou privado?" A resposta foi uníssona nas duas turmas: privado. Fizemos outra pergunta: "Um shopping center é um espaço público ou privado?" Novamente uma resposta uníssona: público. Uma terceira pergunta: "A sala de aula é um espaço público ou privado?" Nas duas turmas dividiram-se as opiniões: parte da turma considerava um espaço público, e outra parte, privado.

A bem da verdade, nós não apresentamos a "definição" completa de espaço público que tínhamos em mãos. Reproduzamo-la na íntegra:

Espaço Público - lugar próprio da convivência social (entre estranhos). Público não deve ser entendido como sinónimo de estatal; nesse sentido, a escola, mesmo a particular, é espaço público por tratar-se de um lugar referenciado na sociedade como um todo.

Notemos que esta "definição" impõe à escola a condição de espaço público. Entretanto, a imposição que aparece depois do ponto e vírgula, não faz parte do corpo da definição, antes é um exemplo. Suprimindo esta imposição, pudemos questionar a escola como espaço público ou privado em nossas duas turmas.

Para muitos, a preocupação com o significado, o mais preciso possível, de espaço público e de espaço privado, pode denotar preciosismo. Mas nossa área de concentração é a matemática e, em matemática, a definição dá condição de existência ao objeto. Bem sabemos que os temas aqui tratados não são entes matemáticos, mas o vício do cachimbo entorta a boca. Além do mais, tais temas são fundamentais na tese defendida nos dois textos referidos no primeiro parágrafo. Resumidamente, poderíamos expor esta tese assim:

"Nos últimos dois séculos, e especialmente nos últimos cinquenta anos, o espaço público vem perdendo sua significação e vem sendo invadido por uma hipertrofia do espaço privado."

Partindo dessa tese, os textos discursam as consequências dessa invasão e como se dá esta hipertrofia. Tentemos apresentar nossas conclusões.

Todo ser humano tem que criar uma imagem de si, tem que dar um significado a si próprio, tem que se construir, que se representar. Esta representação tem duas dimensões: uma que o inclui num todo, que o identifica com outros, que o permite saber-se humano e não felino; outra que o distingue dos demais homens, que o faz saber-se João e não José, que o faz filho de Joaquim e não de Pedro. A primeira dimensão o coloca no mundo com outros e a segunda o coloca no mundo como indivíduo. Chamemos a primeira dimensão de eu-no-outro, e a segunda, de eu-em-mim.

O eu-no-outro é construído a partir de uma concepção social de humano, modelo de humano, e, através das relações sociais. Os indivíduos estabelecem contatos com os modelos e identificam-se com eles, participando da construção dos modelos e construindo o eu-no-outro. E como seria construído o eu-em-mim? É claro que a construção de um homem como indivíduo único não pode ser feita a partir do próprio indivíduo. A identificação do que se é pressupõe a percepção do que não se é. Isso impõe que o homem saia de si para retornar como indivíduo único. Deste modo, o eu-em-mim também é construído através das relações sociais. Notemos, então, que tanto a construção do eu-no-outro como a construção do eu-em-mim dependem de contatos sociais, de interações interpessoais.

Construídos os eus, eles devem ser reafirmados, reconstruídos constantemente, e isto é feito através de "ritos", de ações repetidas que re-significam o eu-no-outro e o eu-em-mim. E qual é o local dos acontecimentos destes ritos? De um, é o espaço público e, do outro, o espaço privado. Tenhamos cuidado agora: o que nos interessa nos ritos não é a sequência de atos que se fazem perceber imediatamente pelos sentidos; o que nos interessa nos ritos é o fluxo dos significados dos atos ritualísticos, fluxo que re-significará o objeto do rito (o eu-no-outro e o eu-em-mim). Deste modo, espaço público e espaço privado são antes espaços de representações mentais do que propriamente espaços físicos.

Cabe-nos, agora, uma tentativa de definição:

Chamemos de espaço a possibilidade de formas.(1)

Definido dessa maneira, há o espaço físico, a possibilidade dos corpos físicos, dos objetos, das formas materialmente constituídas. Há o espaço dos sonhos, no qual as formas são imagens criadas por nossas mentes. A folha de papel é um espaço porque nela se permitem formas pictóricas. O computador gera um espaço virtual. E há o espaço das representações mentais, no qual as formas são as significações que damos aos diversos entes e fatos que constituem nossa vivência. Interessar-nos-á, particularmente, este último tipo de espaço.

Chamemos de espaço público ao espaço das representações mentais através das quais o indivíduo se afirma como ser do mundo, o eu-no-outro.

Chamemos de espaço privado ao espaço das representações mentais através das quais o indivíduo se afirma como ser único, o eu-em-mim.

Vale lembrar que as afirmações referidas nas definições são significações, ou re-significações, geradas por ritos. Cabe notar, também, que o significado comumente dado a espaço público e espaço privado como espaços físicos, lugares geográficos, não é desprovido de sentido. É claro que existem lugares que, por natureza ou por construção, se apresentam propícios aos ritos de afirmação do eu-no-outro (praias e praças são bons exemplos), e outros evocam ritos de afirmação do eu-em-mim (nossa casa é o exemplo mais próximo). Reservemos a palavra "lugar" para caracterizar o espaço físico, geográfico, no qual esteja ocorrendo os ritos de significação dos eus. Quando estamos jantando com nossa família em nossa casa, a casa é um lugar privado. Quando estamos assistindo a uma banda na praça, a praça é um lugar público. Por outro lado, quando damos uma festa em nossa casa, o cerimonial da festa é impregnado de rituais de afirmação do eu-no-outro. Neste momento, nossa casa é um lugar público. O namoro, caminhar de mãos dadas, abraçar, beijar, são rituais ligados ao espaço privado. Ao se namorar numa praça, a praça é um lugar privado.

Um lugar será público ou privado dependendo se nele estiver ocorrendo ritos ligados ao espaço público ou ao espaço privado. Desse modo, um lugar pode ser público e privado a um só tempo. A sala de aula é um bom exemplo de um lugar que está constantemente impregnado de ritos de significação do eu-no-outro e do         eu-em-mim. A sala de aula é, a um só tempo, um lugar público e privado.

Partindo das concepções aqui expostas, e focando a escola e, em particular, a sala de aula, podemos levantar diversas questões:

Quais as consequências da perda de significado dos atos ritualísticos?

O que ocorre quando alguém impede a consecução dos ritos?

Como já dissemos, há lugares que, por natureza ou construção, são referenciados como lugares dos ritos de significação do eu-no-outro, e outros, como lugares dos ritos de significação do eu-em-mim. O que ocorre quando um desses lugares é invadido por ritos do outro lugar?

Deixaremos essas questões para discussões posteriores.


(1) Vamos considerar que "forma" seja um conceito primitivo, dispensando definição. Assim o faremos para que não nos estendamos por demais. 

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Não obtendo êxito na PUC e firme no propósito de fazer o mestrado, comecei a preparar-me para fazer o mestrado no IMPA. Em uma viagem de trabalho a Tocantins, enquanto nos deslocávamos de uma cidade para outra, o Prof. Marcos Cabral sentou-se ao meu lado e me intimou: você vai fazer o mestrado conosco, no PEMAT, na UFRJ. Fiz a inscrição para a prova de seleção do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática ainda na viagem. Passei na prova e na entrevista, e esse programa não exigia um pré-projeto de pesquisa.

Quando cheguei ao Fundão, as árvores do estacionamento e as dos canteiros entre os blocos das escolas, que eu havia deixado, na graduação, baixas e franzinas, estavam altas e frondosas, testemunhas de que o tempo havia passado. O corredor comprido que liga os blocos das escolas estava apinhado de gente, muitas mulheres e muitos negros. O Fundão havia feito uma opção por algo mais próximo do perfil demográfico da sociedade brasileira do que aquela que eu vivera durante a graduação. Podia não ser a universidade de meus sonhos, mas muitas mudanças positivas havia ocorrido.

Desde a inscrição no mestrado, sabíamos que todas as aulas ocorreriam nas tardes das segundas e das quartas-feiras. Isso possibilitava coadunar o horário de trabalho com as atividades do curso. Mesmo assim, em saí de uma escola particular e da matrícula no estado para que pudesse me dedicar ao mestrado.

Um amigo, Marcos Paulo, ingressou no mestrado comigo. Fizemos todas as disciplinas e todos os trabalhos desenvolvidos em grupo juntos, só nos separamos quando da produção da dissertação, porque seguimos linhas distintas de pesquisa. Marcos Paulo é um ponto fora da curva, conhece matemática como poucos. Lembro-me de uma prova que foi marcada para uma segunda-feira. Fiquei estudando todo o final de semana e, ao chegar ao Instituto de Matemática, conversava com colegas sobre a prova que estava por vir quando o Marcos chegou lépido e fagueiro.

- E aí Marcos, estudou para a prova?

- Que prova?

- Nós vamos ter uma prova daqui a vinte minutos!

- E, rapaz, me esqueci! O que vai cair na prova?

Fizemos a prova. A maior nota foi a do Marcos Paulo. Fui perguntar-lhe como ele conseguia aquele desempenho, e ele respondeu: "Eu não sei! Eu leio as questões e as soluções vêm vindo". Às vezes dava vontade de bater nele, competência exagerada destaca a nossa mediocridade, mas o orgulho de tê-lo como amigo é maior do que qualquer revelação.

Uma das grandes vantagens de estar em uma universidade é o número de portas que podem ser abertas. Devem-se aproveitar todas as chances que se revelarem. Em certo momento, Victor Giraldo, coordenador do programa de pós-graduação, enviou um e-mail para os mestrandos solicitando ajuda na implementação de um curso novo que estava se constituindo no CCMN (Centro de Ciências da Matemática e da Natureza). Respondi ao e-mail dizendo que ajudaria com o maior prazer, mas que meu tempo era exíguo. Ele me devolveu o e-mail declarando que sempre é possível ajudar e qualquer ajuda é sempre bem vinda.

Aprendi a admirar Victor Giraldo. Ele é uma pessoa capaz de despir-se da autoridade magistral sem despir-se do conhecimento que possui. Apesar de falar muito (como eu), ele realmente escuta o que os outros têm a dizer.

Na reunião marcada para discutir as ajudas para implementação do curso no CCMN, só eu apareci dentre os mestrandos convidados. Acabei assumindo, sobre a orientação do Victor, boa parte do curso ministrado. Ao entrar em contato com os colegas de sala exclamei:

- Vocês são loucos! O Victor solicita ajuda e ninguém aparece!

Haja adversativas para justificar a ausência! Conheci uma menina que usava uma declaração para explicar as desculpas: "Depois que inventaram o mas, nada mais foi".

No final do semestre apareceu uma bolsa de pesquisa, que o Victor deu a mim, por estar trabalhando no projeto do CCMN. Além disso, foi incluída no meu histórico uma disciplina de Prática Docente, que eu acabei usando no doutorado. Ao apresentar o recibo da bolsa e o histórico aos colegas de turma, alguns disseram: "Se eu soubesse disso, teria aparecido na reunião!" Louros não são recebidos pelo que será feito, mas pelo que se fez.

O PEMAT apresentava uma série de seminários que nos ajudavam a escolher o tema de pesquisa que iríamos trabalhar na dissertação. Cada tema apresentado era mais atraente do que o outro e eu não conseguia decidir o que fazer. Em uma de minhas reclamações com o Marcos Paulo, ele contou-me uma fábula que foi de grande valia.

* * *

A Raposa e o Coelho

Estava um coelho sentado próximo a sua toca com um livro na mão quando uma raposa surgiu de boca aberta. O coelho estava sentado e sentado continuou. A raposa, intrigada com o comportamento do coelho, perguntou:

- Você não vai correr? Não sabe que está próximo de se tornar meu almoço?

- Você não pode me comer. Eu estou provando que o coelho está no topo da cadeia alimentar.

- Como assim?

- Essa é a minha tese. Estou trabalhando nela há algum tempo.

- Isso que você está falando não tem sentido. Todos sabem que as raposas comem coelhos.

- É mesmo?! Venha aqui na minha toca que eu lhe apresento meus estudos.

A raposa entrou na toca certa de que o coelho não sairia de lá com vida. Ao entrar na toca, encontrou um leão, que comeu a raposa.

Moral da história:

Não importa qual é a sua tese. O importante é quem é o seu orientador.

* * *


Com as minhas incertezas sobre o que fazer, resolvi seguir o exemplo do coelho, escolher o orientador antes de escolher o tema de pesquisa. Fui procurar o Prof. Luiz Carlos Guimarães e perguntei-lhe se ele aceitava ser meu orientador, ao que prontamente ele respondeu que sim. Pedi-lhe, então, um tema de pesquisa. Ele deu-me cinco textos para ler e disse que, a partir deles, eu escolhesse o tema. Interessou-me um texto sobre avaliação de larga escala e proficiência matemática. Com isso, formulamos a pergunta a ser respondida na dissertação:

Um bom desempenho no SAEB e na Prova Brasil corresponde a uma boa proficiência matemática?

A ideia inicial era fazer uma abordagem estatística dessas avaliações. Dessa forma, fui procurar o Prof. Nei Carlos dos Santos Rocha, uma das maiores inteligências que eu já conheci e que é estatístico. Fiz um curso de estatística com ele e o Prof. Nei tornou-se meu co-orientador.

Entretanto, como caracterizar a proficiência em matemática? O que significa ser proficiente em matemática? Procurei duas pessoas renomadas que trabalhavam com avaliações de larga escala e perguntei-lhes o que era a proficiência matemática. A resposta que obtive foi: "É o que essas provas medem". Certo, mas o que essas provas medem? E tive como resposta: "A proficiência matemática". Desnecessário dizer que essas respostas cíclicas não satisfizeram uma pessoa da área de matemática.

Mudei o foco da pesquisa. Ao invés de dar um tratamento estatístico às provas, passei a procurar uma definição de proficiência matemática e analisei as provas de acordo com a definição encontrada. O estudo que havia feito sobre Teoria da Resposta ao Item foi posto como um apêndice da dissertação.

Além do meu orientador, Luiz Carlos Guimarães, e do meu co-orientador, Nei Carlos dos Santos Rocha, fizeram parte da banca o Prof. Marcos Aurélio Palumbo Cabral, que me intimou, acertadamente, a fazer o mestrado no PEMAT, intimação que eu agradeço muito; a professora Marta Feijó Barroso, a quem eu admirava desde a época da graduação e que me ajudou muito no desenvolvimento da pesquisa e na elaboração da dissertação, além de ser uma analista de avaliações de larga escala; Victor Giraldo, coordenador do programa de pós-graduação; e Carlos Eduardo Mathias Motta, também envolvido em avaliações de larga escala e com quem eu tivera o prazer de trabalhar em vários projetos.

Minha última fala ao terminar a defesa da dissertação foi: "Entrei aqui com a experiência de 50 000 horas de sala de aula. Saio com as 50 000 horas e com o título de mestre em ensino de matemática".

Um ano depois de terminar o mestrado, por pura coincidência, fui convidado a fazer parte do quadro de funcionários da Cesgranrio, instituição que trabalha com avaliações de larga escala.


Avaliação de Larga Escala e Proficiência Matemática